25 de fevereiro de 2014

E Não É Que Um Dia? O encontro da médica com o paciente surdo.

Marina Guimarães. Foto cedida pela autora.
Marina Guimarães é Médica de Família e Comunidade na cidade de Juiz de Fora, MG. Ela foi uma das cursistas do curso de extensão de Libras, que foi oferecido na UFJF no ano de 2013. Alguns meses depois, recentemente, ela teve a experiência de atender um garoto surdo. Então, ela, gentilmente, aceitou em compartilhar a experiência dela com você. Ela compara com essa experiência com outra, da época em que era acadêmica de medicina. Leia e deixe seu comentário a seguir:

Veja também:


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Um dos incômodos que eu sinto na prática profissional, é quando minha comunicação com o outro não acontece, e essa, das situações, é a mais casual. Quanto tempo eu não levei para entender que capotando* é, curiosamente, um dos anti-hipertensivos mais comuns do meu dia-a-dia, ou que sensação de areia runha na cabeça pode ser uma vertigem ou uma enxaqueca? 


Muito embora presente o incômodo, com o exercício diário, corriqueiro e repetitivo da prática médica, você naturaliza a posição social que mescla autoridade técnica, observação e perscrutação do outro, sem a preocupação em adotar o que toda relação entre duas pessoas exige: troca. Ver o outro, no caso o paciente, como objeto facilita uma vez que distancia, desresponsabiliza em alguns aspectos e economiza tempo e energia.


Meu primeiro contato médico com alguém surdo foi na faculdade, em aula prática de psiquiatria. Uma senhora com cerca de 40 anos encontrava-se em enorme estado de sofrimento mental, apresentando-se em estado de catatonia**. Foi muito frustrante, pois ela foi minha primeira experiência de entrevista psiquiátrica, nem eu, nem mais ninguém no ambulatório sabia nada da língua sinais, nem sequer o mínimo para criar um laço de empatia, por mais limitada que estava toda a situação, aquela senhora não realizava contato visual e movimentava-se a todo tempo pelo consultório.


Essa primeira experiência marcou minha formação e deixou um desconforto, que por vezes voltava. Foi, então, que surgiu a oportunidade de ousar um curso de extensão de Libras, para iniciantes, da UFJF***. Aprender um pouco sobre essa língua linda e tão diferente, me fez sentir a possibilidade de ir além da minha zona de conforto, tanto pela exposição, eu precisaria vencer a timidez, quanto pelo desafio de entender um raciocínio linguístico tão diverso.


E não é que um dia esse garoto chegou e eu resolvi explorar o pouco que não sei? Um sinal de “Olá”, despretensioso, e um sorriso se derreteu. “Como você vai?”, “Qual o seu sinal?”, mais algumas arriscadas, e, talvez um “Tchau” no final das contas, tudo muito foneticamente desajeitado, mas que acabou por propagar uma maravilhosa sensação, e a impressão de que uma relação digna e comunicante pode acontecer, com troca e empatia, nas situações onde grandes barreiras profissionais podem existir.


Vivência maravilhosa, esse curto momento foi a significância do expor-me ao bom ridículo, colocar-me na posição do observado, saindo da zona de conforto do observador tecnicista, do biomédico pudorado. Foi ter a ideia de que alguns gestos podem somar inesperadamente, tanto para mim quanto para o outro. Sentir que portas foram abertas numa despedida que aguarda retorno sem pesares.


Por vezes não nos esforçamos ou não nos interessamos pela acessibilidade do outro, que pode parecer um alguém muito distante do que atualmente somos, mas esse outro não é nada diferente, os sentimentos são os mesmos, tanto os que doem quanto os que subjugam ou fazem sorrir. Uma saúde de qualidade demanda exigência com o que profissionalmente você pode oferecer. Uma democracia em saúde igualitária está intimamente relacionada com a real capacidade que tem de se impor enquanto distinguidora de diferenças e harmonizá-las em prol da equidade, e é nisso que eu acredito.


Porque os olhos brilham,
E entre sorrisos e gestos
Absorvo, entendo, compartilho.
E de lá para cá, 
Sinais fragilmente deslizam
E se despedem, sem despedaçar momentos
Que a memória não há de se esquecer.



* Capotando é uma forma comumente ouvida por profissionais de saúde quando o usuário quer se referir ao anti-hipertensivo captopril, um dos mais prescritos diariamente.
** Catatonia na depressão é um quadro que se acompanha de apatia severa, pessimismo, imobilidade ou lentidão, mutismo seletivo e perda da capacidade de sentir prazer.
*** UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora

Marina Guimarães
Médica atuante na Estratégia de Saúde da Família.

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Quero agradecer à Marina pela colaboração com o blog, e relatar a minha alegria em saber que, através do nosso curso, ela conseguiu fazer a diferença na vida de uma pessoa surda. E parabenizá-la pela sensibilidade que possui no que tange a consciência social da profissão médica.



5 comentários:

  1. Lindo ver gente colocando em prática conhecimentos que podem impactar tanto, e de forma tão simples, a vida dos outros!

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  2. Em meu coração reverbera suas palavras: "Porque os olhos brilham,
    E entre sorrisos e gestos
    Absorvo, entendo, compartilho.
    E de lá para cá,
    Sinais fragilmente deslizam
    E se despedem, sem despedaçar momentos
    Que a memória não há de se esquecer."

    Maravilhoso ler tudo isso!!!

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  3. Lindo! Parabéns, Marina, por seu interesse em mais esta nuance do outro. este outro que está muito além dos sinais e sintomas. que, como qualquer "outro", quer ser compreendido e minimamente acessado. belo texto!

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  4. Parabéns Marina,
    Lembro-me do caso e da nossa impotência diante de uma pessoa com quem não podíamos nos entender de modo convencional. Fiquei muito feliz de ver que teu cuidado com os outros te levou além, buscando mais essa possibilidade de encontrar e entender.
    André

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  5. Parabéns por toda sua sensibilidade, empatia e boa vontade! "Se todos fossem iguais a você/ Que maravilha viver..." Texto lindo!!

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