20 de agosto de 2013

Relato de experiência: Atendendo um paciente surdo na aula de psiquiatria

Segundo o censo de 2010, realizado pelo IBGE, no Brasil existem mais de 9 milhões de pessoas com surdez, sem discriminar aqueles que se consideram surdos e os que se definem como deficientes auditivos. Desta forma, todo profissional de saúde poderá atender pelo menos um surdo ao longo da sua profissão.

Diego Baumgratz - acadêmico do 7º período
da faculdade de Medicina da UFJF
E isso aconteceu com um amigo meu durante uma das aulas de psiquiatria, aqui na faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora. E hoje compartilharei com você o relato dessa experiência que ele me cedeu: 

Veja neste blog:

"Me chamo Diego, sou acadêmico do 7º período de medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Há 1 mês, na aula prática de psiquiatria, eu e outro acadêmico fomos selecionados para conduzir a entrevista de uma paciente. O professor, antes de chamarmos a paciente para o consultório, nos informou que seria uma situação diferente, pois a paciente era surda e só sabia Libras.
Eu, que participei do curso de extensão “Libras e Saúde” por 2 anos, disse que sabia um pouco de língua de sinais. Todos na sala, inclusive eu, ficaram curiosos para ver como o que aconteceria - somos cerca de 15 acadêmicos na turma. Eu estava muito apreensivo, afinal, estava há algum tempo sem praticar a Libras e o conhecimento que tenho é o básico. Enfim, chamamos a paciente e os seus dois acompanhantes, o irmão e a cunhada da paciente, que não sabiam língua de sinais. Inicialmente, me dirigi à paciente: ‘Oi, somos estudantes de medicina, me chamo Diego e entendo um pouco de Libras’. A paciente se mostrou receptiva, abrindo um sorriso. Perguntei qual era seu nome e ela me disse, sinalizando fluentemente e de modo rápido. Pedi que sinalizasse com mais calma pra que eu compreendesse. Agradeci e informei que precisava conversar com os acompanhantes – eu estava nervoso com a situação e me sentindo impotente. A entrevista foi conduzida com o irmão e a cunhada da paciente de modo que todos os acadêmicos puderam participar, e uma coisa que chamou a atenção foi a paciente ter um laudo em que declara possui retardo mental, apesar de ter boa habilidade de comunicação. Após a consulta, durante a discussão em grupo, relatei que me senti impotente na situação e reconheci que excluir a paciente do atendimento não foi a conduta adequada. No entanto, não achei outra forma de prosseguir com a entrevista. O professor comentou que aquela era uma situação difícil de lidar, que ele nem teria como ter um contato inicial com a paciente por não saber Libras - uma pena, pois deve ser uma prática comum nessas situações - e que ele havia achado interessante a abordagem que eu havia feito. Após a aula, algumas pessoas vieram conversar comigo, que acharam muito interessante e que queriam aprender Libras. Fiquei feliz em ver que as pessoas se mostraram sensibilizadas, e me senti ainda mais motivado a estudar língua de sinais. Afinal, se foi horrível me sentir de mãos atadas, imagino para a paciente!"


Esse relato evidencia a realidade de muitos surdos ao frequentarem o consultório médico. Pelo desconhecimento da língua de sinais pelo profissional de saúde e/ ou a ausência de um profissional intérprete, o paciente é colocado de lado, e a interação ocorre entre o acompanhante e o médico. O que pode gerar no paciente sentimentos de angústia, medo e frustração.

Felizmente, o Diego conhece a Libras e conseguiu estabelecer o primeiro contato com a paciente. Mesmo não sendo ao longo de toda a entrevista, foi o suficiente para ela expressar um sorriso, que eu avalio como sendo um alívio e satisfação por estar sendo compreendida.

Podemos ver neste caso a realidade: somente um dentre quinze acadêmicos conheciam a língua de sinais, o que sinaliza a falha na formação médica em relação a acessibilidade a saúde, mesmo existindo o Decreto n. 5626/05, que em seu Artigo 25

         IX - atendimento às pessoas surdas ou com deficiência auditiva na rede de serviços do SUS e das empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde, por profissionais capacitados para o uso de Libras ou para sua tradução e interpretação;

Enfim, com essa publicação de hoje, quero reforçar a importância das escolas médicas e dos profissionais da área se capacitarem para a formação em língua de sinais, para evitarmos os sentimentos de impotência durante o atendimento médico e garantir o acesso à saúde por todas as pessoas.

Você já passou por alguma experiência semelhante, ou conhece algum relato parecido? Compartilhe, deixando seu comentário.

6 comentários:

  1. Gostei muito da postagem do relato de experiência do estudante de medicina e da abordagem realizada. Deveria ter disciplina nas escolas médicas, além a de Libras (minimamente 3 períodos), práticas de atendimento e relacionamento interpessoal com pessoas com deficiência. É uma idéia pra quem for pensar em algo mais acadêmico! Obrigado pela publicação desta iniciativa. Só não podemos parar ou acomodar, pois mais vidas diferentes precisam da saúde de acesso diferenciado.

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    1. Rodrigo, obrigado pelo seu comentário. O que você disse é fato. Não posso dizer todas, mas acredito que a maioria das escolas médicas não ensinam aos seus acadêmicos como lidar com as minorias culturais e com as deficiências. Nos ensinam como se todas as pessoas fossem como um "padrão normal", que sabemos que não existe. Um dos meus objetivos com o blog é poder despertar essa consciência nos profissionais e acadêmicos da área de saúde.

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  2. Gostei da sinceridade do Diego ao mostra-se nervoso, impotente e ter a visão crítica de que a condução da consulta com os familiares pode não ter sido ideal.Também sua percepção sobre o nível de comunicação da paciente contrastando com o laudo de deficiência mental.Dados importantes na avaliação das necessidades de que o ensino médico(assim como outros) estabeleçam informações básicas aos alunos sobre como deve ser feita uma comunicação em consultas com pessoas fora deste padrão estabelecido.Noções sobre LIBRAS, abordagem de pessoas com deficiência intelectual e visual podem ser um diferencial na qualidade da atendimento e nas respostas positivas ás terapias prescritas.O deficiente precisa sentir-se acolhido e respeitado nas suas demandas, e estes movimentos são simples de serem efetuados.Parabenizo o Diego pois evidencia-se sua sensibilidade para o trato humano, uma visão inovadora na formação médica.

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    1. Aguiar, primeiramente obrigado por participar deixando seu comentário. Segundo, a questão sobre o laudo de deficiência mental em surdos é muito comum. Assim como o estereótipo de agressivos. O que na maioria das vezes a única coisa que o surdo possui é necessidade de se comunicar, e a impossibilidade disso se dar, o deixa irritado. E como ele não está tendo acesso a uma língua, o desenvolvimento cognitivo pode ficar atrasado, mas sem ter de fato um transtorno psiquiátrico. Em breve prepararei uma publicação a respeito deste tema.

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  3. Muito legal o relato.....Apenas reforça em mim o desejo de fazer um curso de Libras....

    Achei muito interessante também a questão "de deixar a paciente de lado".....Alguns dias atrás vivenciei o mesmo sentimento em uma consulta que acompanhei. A Senhora havia perdido o marido e já tinha um quadro depressivo. Na consulta, ela apenas chorava em quanto a filha é que conversava com a médica, ninguém se interessou em ouvir a verdadeira paciente. Fiquei com um sensação de impotência depois da consulta!

    Parabéns pelo Blog!!!

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    1. DTM,

      Obrigado pelo comentário!
      Fico feliz em saber do seu interesse, e te incentivo a começar a aprender a Libras. Com certeza você aprenderá muito mais do que a língua de sinais.

      Numa consulta é essencial o contato direto entre médico e usuário, sem um intermediário. A conversa sincera, com confiança é importante para o desenrolar da consulta. E quando essa comunicação é travada, o profissional fica sem poder ajudar de fato quem lhe procura. E no Brasil, segundo o IBGE/2010, existem mais de 9 milhões de pessoas com surdez no país.

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